YES, a gente tá ali também!

Sobre fundo verde a imagem ilustrada de oito mulheres diferentes. A primeira de cima para baixo, da esquerda para a direita é branca, com a cabeça raspada e possui uma prótese na perna direita; a segunda é uma mulher branca com um corpo padrão e loira; a terceira é uma mulher morena com o cabelo rosa e vitiligo; a quarta é uma mulher branca de cabelos escuros e gorda; a quinta é uma mulher branca de cabelos curtos roxos; a sexta é uma mulher negra de cabelos curtos cacheados azuis; a sétima é uma mulher parda com os cabelos ondulados sobre os ombros na cor rosa e está em sua cadeira de rodas; a última, no canto inferior direito da imagem, é uma mulher negra, de cabelos longos e escuros, gorda e com o braço esquerdo amputado. Todas elas vestem biquinis na cor roxa. No topo da ilustração está escrita a frase entre aspas: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”.

entrevista Amanda Mittz por Vanessa Cortez / Ilustração Paloma Santos

Vanessa Cortez, jornalista da 7.1, entrevistou a artista Amanda Mitz para falar com sobre arte, acessibilidade, representatividade e seu papel na novela Todas as Flores, novela original do Globoplay. Dia 22 de maio a novela exibiu o primeiro beijo lésbico entre duas mulheres com deficiência e a gente não podia deixar de falar por aqui sobre esse marco super importante. Esse beijo simboliza a luta contra o capacitismo e a homofobia no Brasil além de falar sobre representatividade.

Como foi chegar até aqui trazendo a deficiência como uma bandeira?

Sempre fez parte do seu processo artístico?

Então, sim… eu penso sempre na acessibilidade de um outro lugar. De um lugar criativo. Através do que já foi criado de tecnologia eu uso soluções artísticas pro meu trabalho. Isso você pode ver através dos shows e das músicas que eu lanço também.

Pra mim sempre foi uma coisa muito boa trazer isso como bandeira no meu trabalho porque me dá um norte artístico, primeiramente. Pra além da música, me dá um norte artístico. E é um diferencial, sim, do meu trabalho e eu sinto que tô fazendo algo pra ter uma mudança, independentemente do tamanho que ela seja. Eu sei que o que eu faço causa uma transformação social, entende? Então isso me dá um senso de missão com a minha música muito maior e me motiva muito mais a fazer o que faço. 

O que isso significa pra você individualmente e socialmente? (Explicando melhor, como é ser porta-voz dessa causa pra você?)

Eu não acho que sou porta-voz, sabe? Porque existem muitas pessoas que falam sobre esse assunto, eu só sou mais uma. Eu acho que talvez eu seja uma das poucas que falam sobre isso dentro da música, mas eu também não sou a única. Eu acho que, pra mim, sempre foi algo que me abriu portas porque é um assunto relevante, é um assunto importante, é um assunto que tá em pauta, sabe?


Cria-se um impacto dentro desse recorte das pessoas com deficiência que é elas poderem se espelhar. Virem um espelho em mim, já que durante muito tempo pessoas com deficiência que são artistas não tiveram representatividade. 


Pra mim, individualmente, isso significa me empoderar da minha deficiência e isso me ajuda a conviver com a minha deficiência. Que é uma deficiência progressiva. Eu tenho uma doença, que é um tipo raro de glaucoma e ele não para de evoluir. Ele estaciona, mas ele está sempre evoluindo pra uma perda de visão, então é algo bem complexo de conviver e poder falar sobre isso abertamente através do meu trabalho me ajuda a aceitar essa condição.

Que diferenças você percebe entre se colocar nessa posição na música ou em outros espaços de arte como em uma novela? Acredita que têm espaços mais fechados que outros?

Olha, eu acho que dentro do campo da arte tudo é novidade em relação à pessoa com deficiência e a inclusão da pessoa com deficiência nesses espaços. Então eu não acredito que um lugar é mais difícil que o outro porque as pessoas sem deficiência ainda não sabem como lidar. Acho que a questão maior que a gente vive hoje é que as pessoas sem deficiência ainda não sabem lidar com pessoas com deficiência porque não convivem com pessoas com deficiência, não conhecem pessoas com deficiência.  As pessoas com deficiência durante toda a História, desde que o mundo é mundo, foram pessoas invizibilizadas, eram sempre as pessoas que ficavam dentro de casa ou apenas ocupavam os espaços delas mesmas, andando sempre em grupo com elas mesmas. Então agora que a gente está começando a furar essa bolha de integração das pessoas com deficiência ocuparem os mesmos lugares de pessoas sem deficiência com naturalidade. Mas isso é um processo que vai ser bem demorado, que é de aprendizado muito mais das pessoas sem deficiência do que pessoas com deficiência. Elas compreenderem que nós merecemos os mesmos lugares, nós fazemos parte dos mesmos lugares. Nós nunca estivemos tão bem como agora, eu prefiro ver desse lado otimista. 

Você procura tornar seu trabalho musical o mais acessível possível, além de compor letras que falam sobre se reconhecer e que propõem o olhar pro diferente. Como você acha que isso impacta na recepção da sua música?

A percepção que eu tenho é que as pessoas estão ainda começando a entender qual que é a minha como artista, sabe? Porque acredito que meu trabalho musical ainda é recebido naquele lugar do assistencialismo e eu luto pra que não seja porque antes de ser uma pessoa com deficiência eu sou cantora. E sou cantora, de verdade, muito antes de ser uma pessoa com deficiência porque eu comecei cantando aos 6 anos, com 15 anos comecei a trabalhar profissionalmente na música e perdi minha visão entre os 19 e 20 anos, não sei ao certo. Então, eu já era cantora antes. Só que, ao mesmo tempo, hoje eu sou uma cantora e pessoa com deficiência que traz essa pauta pro trabalho. Então é um desafio pra mim fazer com que as pessoas compreendam esse pacote e não me coloquem no lugar do assistencialismo, mas, sim, uma vertente dentro da música pop, que é uma música pop que fala sobre o empoderamento da pessoa com deficiência também, entende? Mas dentro de outros assuntos que eu também abordo dentro das minhas músicas. 

O que você acha que a jovem Amanda (criança ou adolescente) se sentiria se vendo representada nas novelas? Você acha que as barreiras internas e externas seriam mais brandas?

Com certeza as barreiras seriam mais brandas, sabe? Porque é tão necessário a gente ter modelos que nos inspiram. Pessoas que são como a gente e que levam a gente pra um outro lugar de perspectiva e de desejo mesmo. Porque o meu desejo seria talvez mais forte, mais cedo, se eu tivesse me visto representada na televisão. Apesar de eu ter me tornado uma pessoa com deficiência já adulta, foi um processo demorado de aceitação e é ainda um processo que eu absorvo e vou digerindo diariamente. Mas a televisão é um meio de comunicação mais abrangente, que invade a vida das pessoas, a casa das pessoas. Então ter pessoas como eu, pessoas com deficiência dentro dos produtos como novelas, dos filmes, cria-se uma naturalidade de que aquilo é normal, de que aquilo é natural. Mesmo que eu tenha me tornado uma pessoa com deficiência mais velha, se esse modelo de pessoas já tivesse ocupando esses lugares antes na televisão, talvez não tivesse sido tão difícil pra mim minha aceitação como pessoa com deficiência porque já seria mais  natural ver isso em todos os lugares. E isso faz parte da nossa luta como artista com deficiência, naturalizar nossa presença nos espaços.  

Como você se sente sendo essa representante pra outras gerações? Tanto do ponto de vista de ser uma pessoa com deficiência, quanto protagonizando um beijo lésbico?

Acho muito legal, foi uma super oportunidade que eu agarrei com muita vontade, sabe? Porque eu sabia o que eu tava fazendo. Na novela, na hora do beijo, eu sabia o que aquilo representava. É tanto que eu falava pra Camila: essa cena é uma cena muito importante, vai ter um impacto, porque são duas mulheres lésbicas com deficiência se beijando na televisão e isso nunca aconteceu. Então foi muito consciente aquele beijo, eu quis que o beijo fosse um beijão. Isso aqui é histórico, então não dá pra ser um beijinho, vamos dar um beijão, entende? Porque isso inflama a nossa classe. Inflama no sentido bom, as pessoas sentem orgulho daquilo. Elas falam: YES, a gente tá ali também! Elas se sentem representadas ali. Eu me encho de orgulho pra falar sobre isso e eu fico muito feliz por ter tido essa oportunidade. Porque quando eu vi a oportunidade no meu colo eu agarrei com muita força! 

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