Por uma escrita aleijada 

Ilustração mostra cinco mulheres unidas simbolizando o Dia Internacional das Mulheres. Duas delas estão com os punhos para cima. Uma está na cadeira de rodas e outra está com sua bengala. As cores das peles são apenas ilustrativas, sem simbolismos de raça. Acima delas está escrito em letras azuis: Não queremos flores, queremos prazer! O fundo é dividido em duas cores, branco e rosa. No canto inferior direito a assinatura da ilustradora @partes.art e a logo da 7.1.

por João Paulo Lima / Ilustração Paloma Santos

O título deste texto  talvez deixe o leitor intrigado. São tantas ideias , imagens nos últimos anos, e todas elas levaram meu corpo a uma dança inquieta, a um estado de euforia coreográfica para pensar um (qualquer) corpo dançante.

Comprometi-me com os corpos def, o meu, primeiramente. Redigir palavras sobre o aleijo. Não atribuindo ao aleijo o que convencionalmente pensamos. O aleijo aqui é a própria forma, o modus operandi de como compor um texto, uma dança, uma obra qualquer, a partir do que o corpo def guarda em si, afetado por tantos outros artistas defs que influenciam o meu compor aleijado, a poética aleijada de Lua Cavalcanti (DF). 

Antes de escrevê-lo, busquei na mente todas as demandas que me vieram como sujeito de minhas criações em dança nos últimos anos e as que fui construindo em mim, corpo def gay-dançarino- artista- educador-performer- escritor. Parece apenas vaidade citar todas as funções que agreguei ao meu corpo. Porém, soam mais como ousadia e percepção de si do quanto se é necessário ainda desafiar o próprio corpo dentro de uma sociedade capacitista/ eugenista.

A poética do aleijo, do reconhecer-se manco me fez para essa escrita. Misturar gêneros textuais e me comprometer com um texto que flua como ensaio, treino, exercício de pensamento escrito. Um ensaio, diria, “coreortográfico”, que pende para um relato de experiências. A escrita em mim sempre ocupou lugar essencial. Escrever foi minha primeira tentativa de voo, não foi a dança, porque já aos doze anos, perdi a perna direita e dançar balé, por exemplo, não seria uma possibilidade naquela época. Nem agora, ainda.

Escrevo também inspirado em relatos de muitos outros defs que tenho me conectado em discurso, práticas e trabalho. Nossos referenciais teóricos ainda são escassos, por isso mesmo precisamos apostar nessa escrita experimental, experiencial e ensaística, que desafia a hegemonia e o “bipedismo compulsório”  que nos atenta o artista e professor Edu Oliveira (BA) às maneiras de percebermos a possibilidade de ser corpo, corpo def criador dançante. Imaginando como numa jam session que o improvisar a palavra exige muita consciência corporal, percepção física do peso, apoio, confiança e entrega. Escrever é dançar, não tenho dúvida, e como ouvi certa vez de Gonçalo M. Tavares, sempre foi orgânico, físico e violento. “O ser humano escreveu, antes de tudo, arranhando, perfurando rochas e pedras”; assim, continuamos, como num experimento de ferir e marcar as palavras em uma ordem nunca dita antes.

 Acabo sempre escrevendo sem parar na empolgação de dizer muitas coisas e por isso o título deixou a cabeça inquieta e quedada na dúvida. Ainda assim, apostei no aleijo da escrita, na escrita do aleijo, sem um interesse apenas de que ela esteja poética ou metafórica ou que agrade a alguns apenas. Quero que ela desagrade e seja deslida para poder ser entendida. Que seja mais falta do que excesso.

Todos sabemos ler um “ corpo sem o sentido da falta?” (TAVARES,2013p.56)

A escrita aleijada é um risco, assim como também ter sido jogado numa sala de balé com outros corpos bípedes sem qualquer entendimento do meu próprio corpo e do que ele faria ali, também tenha sido um dia para mim traumático. Foi, mas não é mais. Eu mesmo elaborei meu plié, grand ecart, cambré a meu modo, olhando-me, arriscando-me, caindo-me. Cair para um corpo def amputado é rotina, é forma de continuar, é improviso necessário. Assim como desequilibrar compõe nossas coreografias, estar sempre vulnerável aos tipos de chãos, pisos, lugares e conviver com suas lisuras ou asperezas, buracos.

  Escrever como quem anda de muletas e sente três apoios, calos nas mãos, dor nos ombros e trapézio, mas num passo longo e bem rápido. Escrever como quem está na cadeira de rodas e repete o movimento que permite a roda te levar pra frente e a perceber o mundo de um modo mais horizontal e em ângulo mais baixo. Ou também, como quem estaciona rotineiramente em meios fios, degraus que nos impõem uma espera ou destreza para descobrir como chegar ou mesmo desistir de seguir. Escrever como uma pessoa surda ou uma pessoa cega, imaginando a língua em sinais criados pela imagem imediata de uma pessoa nomeada ou escrever como que pontilha e tateia uma textura que o comunica para além de uma grafia convencional.

Escrever compondo uma nova gramática do corpo e para o corpo. Qual? Escrever como se os dedos fossem as pontas das minhas muletas que marcam a areia e causa estranheza de quem virá depois de mim. Uma nova ou novas gramáticas que aglutinem mais e possibilitem afixos, não apenas composições por justaposição e derivações im(possíveis). Uma escrita def-aleijada-amputada, manca nasce de luta (s), de raiva (s)  do que chamou espanhola  Itxi Guerra de Revolución Anticapacistista. Cresce da rouquidão de gritos historicamente vociferados e pouco escutados, nasce também de muitos agentes presentes, de representatividades, intercâmbios, residências artísticas nas quais corpos def e não defs compõem, fazer acontecer juntos os processos em que nós mesmos nos decolonizamos continuamente de todas as formas de submissão das nossas identidades, empoderamentos e sobrevivências. Com uma arte aleijada, escrita, dançada, pintada, cantada:  “algumas “sobras viventes” conseguem virar sobreviventes. Outras, nem isso. Os sobreviventes podem virar “supraviventes”: aqueles capazes de driblar a condição de exclusão, deixar de ser apenas reativos ao outro e ir além, armando a vida como uma política de construção de conexões entre ser e mundo, humano e natureza, corporeidade e espiritualidade, ancestralidade e futuro, temporalidade e permanência” ( Encantamento: sobre política de vida de Luiz Rufino)

E por sobrevivermos a essa história que ainda nos apaga, que não se ressente por discriminar, por haver incinerado, exterminado, jogado em rios, ofertado como holocaustos corpos defs,é que resolvemos pelas margens da sociedade,  minar  o que realmente queremos fazer sobre nosso corpo presente. Lançar a ideia de um futuro def, é aleijado é antes de mais nada, lançar mão de dados estatísticos que destoam da visibilidade de PcD no mundo. Se somos vinte cinco por cento de uma população mundial que beira oito bilhões, onde estamos, onde somos vistos, que setores, lugares, palcos estamos? A resposta é óbvia: Não estamos! E não é uma escolha nossa. A construção de um mundo capacitista, eugenista e hegemônico trouxe esse débito ou saldo negativo a nossas existências.

João Paulo Lima é artista-performer- educador e escritor. Doutorando em Dança (UFBA). Mestre em Literatura Comparada (UFC) Técnico em dança contemporânea e assessor de acessibilidade. Desenvolve suas pesquisas sobre corporeidades diversas. Dirige espetáculos de dança, teatro e video- performance.  É ativista dos direitos das pessoas com deficiência e colaborador do coletivo nacional LGBT: Vale PCD.

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