por Caroline Pacheco / Ilustração Paloma Santos
Imagine a seguinte situação. Você está andando na rua em pleno carnaval. Um sol pra cada cabeça. Muito calor, suor, clima de festa, pegação. Então você resolve beber uma cerveja. Normal, né? Mas, assim que você dá o primeiro gole, todos ao redor vão ao delírio. Gritam, aplaudem. Ué, que isso? Será que estou num comercial da Itaipava?
Ou, então, imagine você chegando em uma balada. Som alto, pouca luz, pessoas dançando e se esbarrando. Você é só mais um gato pardo naquela pista escura? Aparentemente não, porque desconhecidos vêm, a todo momento, te abraçar e te parabenizar por estar ali, como se fosse algo muito inusitado, ou até ousado, você querer aproveitar a noite da mesma forma que eles.
Se você que está lendo possui alguma deficiência, talvez já tenha passado por situações assim. Na primeira vez, pode parecer engraçado. Na segunda, curioso. Mas, na terceira, você já se pergunta se voltou a moda do flash mob, porque não tem outro motivo aparente pras pessoas estarem agindo assim, né? Risos.
Apesar de parecer extremamente corriqueiro que uma pessoa com deficiência queira exercer o seu direito ao lazer, na prática não é. Eu, por exemplo, mesmo tendo trabalhado por anos em baladas e festivais de música, só fui descobrir isso depois que sofri um acidente e adquiri uma deficiência. E então passei a precisar fazer coisas absurdas, como ter que ligar antes para um bar, pra saber se lá teria um banheiro que eu conseguisse usar. Ou até mesmo entrar carregada por bombeiros em uma balada, já que o local não era acessível para cadeirantes.
Mais do que dificultar – ou até impedir – o acesso de pessoas com deficiência, essa falta de acessibilidade gera um ciclo vicioso. Quanto mais dificuldades de acesso, menos pessoas com deficiência são vistas nesses espaços. E, quanto menos pessoas com deficiências são vistas, mais “inusitado”, “ousado” ou “surpreendente” passa a ser o fato de uma estar ali. Com isso, vem todo esse misto de preconceito e estranhamento e também aquele velho discurso dos donos de estabelecimentos de “mas por que eu preciso investir em acessibilidade, se eu nem tenho clientes com deficiência?”. Ora, por que será que você não tem, né?
Citando aqui um post da 7.1: “Por que quando nos deparamos com uma pessoa com deficiência vivendo sua própria vida, ligamos essa vivência a uma história de superação? A deficiência é apenas mais uma característica dentre tantas outras, ela é algo para se conviver e não superar.”
Bom, tem muitos vieses capacitistas que levam as pessoas a pensarem isso, mas talvez tenha também o fato de que realmente foi uma baaaita superação ter conseguido subir 3 degraus, atravessar um corredor estreito e manobrar a cadeira no banheiro. Risos. Mas não deveria ser assim.
A bagunça precisa ser acessível justamente para que, ao ver uma pessoa com deficiência em uma balada, as outras pessoas não olhem e comentem “nossa, essa gosta mesmo de uma bagunça, hein”. É claro que gostamos. Saímos, rimos, bebemos, dançamos e, pasmem, vou fazer uma revelação: também transamos!
Virar o centro das atenções é ótimo quando você está linda ou quando você está arrasando na pista. Mas é péssimo quando isso se deve a ter uma deficiência. Afinal, eu não quero – ainda mais em meu momento de lazer e diversão – ficar sendo lembrada a todo momento do meu acidente. Não quero ter que ficar contando como foi, tudo que eu passei, revivendo dores, etc.
A luta pela acessibilidade nesses espaços não faz só com que pessoas com deficiência possam ocupá-los. Ela tem também o poder de combater a corponormatividade, à medida em que, quanto mais pessoas com deficiência são vistas, menos estranheza elas passam a causar nas outras pessoas.
Ao planejar um evento, é preciso pensar que pessoas com deficiência, antes de tudo, são pessoas e também querem frequentar esses espaços. E não é só colocar uma intérprete de Libras no canto do palco ou uma rampa mal projetada que mais parece uma montanha russa. É preciso coerência na hora de aplicar os recursos, fazendo-o por respeito às pessoas e não só para cumprir o mínimo previsto por lei.
A bagunça precisa ser acessível porque a gente também quer bagunçar.
Caroline Pacheco é produtora de eventos culturais e esportivos. Já trabalhou em projetos junto com o Instituto Tomie Ohtake, a Secretaria Municipal de cultura de São Paulo e parada do orgulho LGBT+ de São Paulo. É consultora de inclusão e acessibilidade e colaboradora da 7.1 acessibilidade trabalhando como gestora de projetos e produtora de eventos em alguns projetos.