por Vanessa Cortez / Ilustração Paloma Santos
O ano é 2024 e as pessoas ainda nascem com selos invisíveis, às vezes nem tão invisíveis assim, que a distinguem. No caso das mulheres, existe uma quantidade enorme de selos que vão sendo atualizados à medida em que ela adentra a adolescência, a fase a adulta, a velhice. Existe sempre uma percepção de fora para a validar e, consequentemente, essa percepção ajuda a construir as bases da identidade do que é ser mulher.
O que é ser mulher só mesmo uma mulher – cis ou trans – entende. Porque é algo que se passa pelo corpo; um corpo que não transita sem expectativas do que ele deveria ser ou atender. Simone de Beauvoir traz a sentença eternizada: “não se nasce mulher, torna-se mulher”, porque é exatamente à medida em que existimos que vamos tomando consciência de que os espaços são ainda limitados demais, apertados demais para nós. Ainda que sejamos modernas!
Para ser mais atual, a escritora Iana Villela fala que: “toda mulher quando nasce ganha algumas funções (e nenhum salário para isso) de presente do patriarcado: um desejo celestial de ser mãe e talento sobrenatural em cuidar, principalmente quando o cuidado exige nosso tempo, olhar, mãos, braços e tudo que desfigure nossa individualidade.”
Para essa habilidade tão nobre que se tornou intrínseca ao ser feminino hoje temos nome: economia do cuidado, e ela é o pilar que segura o sistema econômico brasileiro forjado em raízes escravocratas. O dito “trabalho invisível” que é aquele feito todos os dias um pouco, interminavelmente, no meio de intervalos entre jornadas de trabalho formal e de cuidado, é atribuído às meninas tão logo tenham habilidades para brincar. E desejar.
O que dizer de uma indústria de brinquedos que estimula desde muito cedo a criação de uma identificação com um papel de gênero bem determinado: aquele que cuida, limpa, cozinha e pare filhos. É impossível passar impune a esse movimento de construção de identidade se você é uma mulher. Dessa forma, para além de ensinar que existem deveres para o ser feminino, tem algo mais grave aí que vai formando uma teia interna: a noção de valor.
Criamos uma identificação tão forte com esse papel que se não damos conta de gerir a casa, cuidar da família, trabalhar fora e, ainda, ter tempo de cuidar da aparência e da saúde mental, fracassamos. E se damos a esse movimento o poder de validar quem somos e, assim, valorar a nossa existência, esse caminho fica ainda pior. Se o valor de uma mulher é medido a partir do quanto ela dá conta de cuidar de tudo, como ela se liberta disso? E ainda, se o valor mais alto é assegurado à mulher que cuida, como ficam as mulheres que são cuidadas? Como ficam as mulheres com deficiência que precisam de auxílio em atividades domésticas? Por que as mulheres cuidadas estão sendo cuidadas sempre por outras mulheres? Onde estão os homens quando essas mulheres adoecem? Onde ficam os homens nisso tudo?
Existem muitos recortes sobre as realidades do ser feminino, mas se a valorização de uma mulher não vem da própria existência em si e, sim, do quanto ela “doa” (leia-se: trabalha sem ganhar dinheiro para isso) do seu tempo, disposição, habilidades adquiridas, as bases do seu autoamor ficam comprometidas. A visão sobre si fica deturpada. Elas adoecem: seja por “doar” demais ou por não conseguir “doar” o que esperam dela.
Pesquisa da Think Olga de 2023 mostra o quanto as mulheres estão sobrecarregadas e esgotadas com a carga mental e de cuidado que lhes é exigida. Segundo a pesquisa, “45% das mulheres relatam terem sido diagnosticadas com algum transtorno mental. Além disso, a ansiedade é parte da vida de 6 a cada 10 delas (ou seja, somos a parcela mais ansiosa da população, no país mais ansioso do mundo!). Entre as razões do adoecimento e insatisfação, 48% apontam a situação financeira e 36% as dívidas; 22% falam sobre o trabalho doméstico e 20% sobre a jornada de trabalho excessiva (que pode ser dupla ou até mesmo tripla).”
Na pesquisa Esgotas, da Think Olga, temos uma noção quantitativa do quadro de adoecimento das mulheres. Mas basta virar para o lado que vamos nos deparar com uma de nós reclamando de não dar conta; com uma de nós falando que não tá fácil; com alguma de nós se comparando a um desempenho irreal de um outro alguém; com uma mãe que vez por outra diz que tem vontade de fugir; ou com um homem sentado no sofá assistindo ao futebol enquanto a companheira se vira em 10 para dar conta dos afazeres da casa antes de dormir.
Não queremos e não seremos medidas pela régua da doação, do cuidado, do sacrifício, da disposição, da santidade e do afeto incondicional. Quebremos as réguas e as medidas, pois não cabemos; descartem os selos porque não queremos dar conta. Estamos construindo um novo vocabulário do existir!
Vanessa Cortez é coordenadora de mídias sociais da 7.1 e formada em Comunicação Social e Mestre em Literatura, Cultura e Contemporaneidade, tem interesse em tudo que envolve ouvir e contar histórias, de forma oral ou textual, e estar em contato com pessoas.