Acessibilidade Ampliada: Microacessibilidade e Princípios para Projetos que Vão Além da Norma

Sobre fundo amarelo com detalhes em branco, O que é microacessibilidade e como pensar além da norma? Escrito em roxo com letra cursiva.

Por Estúdio+1 / Ilustração Paloma Santos

A aplicação prática dos padrões estabelecidos pelas normas para acessibilidade frequentemente encontra dificuldades em contextos reais. E esses desafios se intensificam em ambientes informais, realidade principalmente nas grandes cidades latino americanas. Por isso, é essencial pensar em soluções que extrapolam as normas vigentes, sem perder o foco no conceito básico da acessibilidade, que é promover acesso com autonomia e segurança para todos. 

Para que a acessibilidade se realize em equidade de oportunidades, é importante compreender que os problemas não residem no indivíduo, mas sim no meio, seja ele físico ou social. Quando o meio não está preparado para receber a todos, independente da sua condição, é que se estabelecem as barreiras. Uma vez que se entende que a diversidade é intrínseca à característica humana e que cada indivíduo é único e diferente, consequentemente a solução é clara: são as barreiras do meio que precisam ser eliminadas para garantir o acesso de todes a todos os lugares.

Este artigo, portanto, explora a desconstrução do conceito de normalidade para entender a diversidade humana. Para isto, é necessário que as soluções técnicas de acessibilidade sejam extrapoladas, ampliando as referências e soluções adaptáveis a diferentes contextos, para que sejam abrangentes e inclusivas, e consigam, por fim, abranger maiores espectros da diversidade que se distanciam do padrão, que tende a ser excludente. Afinal:

“Não há normalidade ou anormalidade! Há uma igualdade intrínseca do ser humano, e não importa como são nossos corpos. Nossos corpos, como forem, são corpos que importam, são corpos dignos.” — Tuca Munhoz, Biblioteca de Microacessibilidade

No contexto geral da população, no entanto, ainda prevalece o capacitismo, no qual a responsabilidade de inclusão recai sobre a pessoa, o indivíduo, esperando-se que ela se adapte a uma sociedade construída para um padrão de normalidade.

Além de condições específicas de cada indivíduo, é importante destacar que a diversidade do ser humano está relacionada a sua identidade, seu corpo, suas formas de interação com o meio e sua condição social. Assim, seria complexo descrever cada uma das pessoas, considerando a interseccionalidade que formam cada um, dentro dos grupos sociais aos quais pode estar relacionado.

A interseccionalidade extrapola a característica única para constituir cada indivíduo sobre múltiplas camadas. Gênero, idade, raça, classe social, deficiências e responsabilidades são algumas das camadas que conformam um indivíduo. Se identificada a zona padrão dentro de cada uma dessas condições, é possível dizer que quanto mais um indivíduo se afasta deste padrão, mais se formam as “zonas de vulnerabilidade”. Mulheres, pessoas negras e idosos, por exemplo, podem ser classificados como vulnerabilizados, já que se afastam do padrão. Essas características podem, então, se acumular (mulher, preta, idosa, por exemplo), distanciando o indivíduo do padrão estabelecido pela sociedade e para o qual são projetadas e construídas todas as coisas.

A figura abaixo ilustra a relação entre as zonas de vulnerabilidade de cada indivíduo e demonstra a diversidade humana, mostrando como cada pessoa pode apresentar diferentes condições de forma mais ou menos intensa. Essas condições se interligam e a soma delas pode aumentar a vulnerabilidade. A interseccionalidade das condições elencadas em cada grupo mostra como se conforma o coletivo no espaço público urbano, palco dos conflitos.

As diversas zonas de vulnerabilidade sobrepostas a um padrão idealizado pela sociedade nos mostra que o padrão é, de fato, uma ilusão. Para incluir as pessoas em situação de vulnerabilidade, é necessário, então, conhecê-las e reconhecê-las, considerando suas particularidades, medos, inseguranças e potencialidades na vivência da cidade. Por essa razão, é importante compreender, pensar e projetar para a diversidade humana e, assim, construir espaços seguros e acolhedores, garantindo autonomia a todos, independente das suas condições físicas ou socioeconômicas.

Diversidade Funcional

 “A padronização do corpo é uma ficção estatística de caráter meramente instrumental.” — Pedro, Biblioteca de Microacessibilidade

A padronização do corpo é um instrumento histórico para representar o ser humano. Esse recurso é utilizado, inclusive, na formulação da norma de acessibilidade universal brasileira (NBR9050). Para a definição de distâncias adequadas e acessíveis, a norma se baseia nos movimentos de uma pessoa em cadeira de rodas padrão, considerando, por exemplo, que essa pessoa apresenta mobilidade completa nos braços, o que não é uma regra.

Em outros casos, a redução de mobilidade pode não ser a mesma ao longo do tempo, ou então, ela pode acontecer de maneira temporária, como um membro quebrado, ou até mesmo, ao precisar empurrar um carrinho de bebê. Todas essas são situações que exigem algum tipo de solução acessível devido a alguma diversidade de funcionamento do corpo, que pode ser permanente, temporário ou situacional.

A partir do reconhecimento dessas múltiplas condições humanas é que foi adotado o termo “Diversidade Funcional”. Ele é discutido desde 2005 como uma alternativa ao termo “Pessoa com Deficiência”, transferindo a responsabilidade da impossibilidade de acesso da pessoa para o ambiente e se referindo a cada pessoa de forma positiva. A diversidade funcional é, então, designada a todas as pessoas, visto que somos todos diferentes.

Além disso, a vivência e a percepção de diversidade funcional não estão apenas relacionadas ao indivíduo (nos diferentes tempos de vivência da diversidade), mas

também à comunidade. Ou seja, família, amigos e desconhecidos vivenciam a

diversidade funcional também nos mais diversos modos. Quando se trata do termo “pessoa com deficiência”, a atenção se volta ao indivíduo que está mais longe da zona padrão e o transforma em problema a ser resolvido. Quando se trata de diversidade funcional, as atenções se dividem e todos os indivíduos passam a ser observados no contexto da acessibilidade.

Assim, a abordagem da acessibilidade não se limita às condições corporais das pessoas, mas também compreende suas interações com o espaço e com as outras pessoas. Isso retira o foco das funções corporais e considera as interações com o meio, independentemente da condição corporal de cada indivíduo.

Visão Provocativa: Ampliando a Acessibilidade

Quando a responsabilidade pela acessibilidade de um espaço é transferida da pessoa para o próprio ambiente e para a sociedade, amplia-se a capacidade dos espaços de receber a todes dentro das suas diversidades funcionais e zonas de vulnerabilidade. Expandir o espectro das soluções e entender a diversidade funcional implica adotar medidas inclusivas que eliminem barreiras e criem um ambiente onde todos se sintam capacitados a contribuir e se desenvolver plenamente.

Quando olhamos para a acessibilidade de maneira mais ampla, um dado bastante interessante que mostra esse espectro da diversidade funcional é a comparação dos dados do IBGE sobre a proporção da população com deficiência ao longo dos anos em suas pesquisas.

O conceito do que é uma pessoa com deficiência se modificou e ainda se modifica. Em 2010 o IBGE indicou que 24% das pessoas tinham “alguma dificuldade”, incluindo as pessoas com deficiência. Já em 2018, apenas 6,7% foram contabilizados como pessoas com deficiência, já que a pergunta indicava pessoas com um “grau grande de dificuldade” ou “incapacidade completa”. Essa alteração de 24% para 6,7% não indicava uma diminuição do número de pessoas com deficiência, mas sim que o conceito se alterou, pois antes englobava pessoas que consideravam ter menores graus de dificuldade. 

Essa análise demonstra que a questão da acessibilidade pode atingir muito mais pessoas quando se expande para as diversidades funcionais, de diferentes graus e em diferentes situações. Portanto, quando um espaço é adequado em acessibilidade, ele com certeza está atendendo um número ainda maior de pessoas, tornando o espaço muito mais inclusivo. 

O que é Microacessibilidade?

Os espaços públicos urbanos são os lugares mais importantes quando se trata de garantir acesso equitativo aos recursos, serviços e oportunidades em uma cidade, visto que são palco da coletividade e de direito de todes. São estes espaços, portanto, que precisam ser pensados para além do padrão e abertos às múltiplas soluções e experiências, que promovam espaços úteis e qualificados.

A partir dessa visão de cidade, a Microacessibilidade se apresenta como uma abordagem importante, cujo objetivo é aumentar a acessibilidade nos espaços públicos urbanos. A Microacessibilidade abrange os conceitos de mobilidade e acessibilidade, garantindo que espaços, eventos, produtos e serviços possam ser acessados, utilizados e desfrutados por todas as pessoas, respeitando a diversidade funcional humana. Ou seja, este conceito refere-se à facilidade de acesso direto aos destinos desejados, com foco na mobilidade da pessoa, considerando suas condições físicas, sensoriais, mentais, perceptivas, culturais e sociais no planejamento urbano.

A Microacessibilidade promove uma rede de percursos acessíveis, seguros e inclusivos de pedestres, baseando-se no conceito de “cadeia de mobilidade acessível”, no qual é garantida a continuidade dos trajetos, independente do meio de transporte utilizado. O pedestre é, nesse contexto, prioritário, já que é a relação mais básica e direta do indivíduo com o espaço público e coletivo. Ela trata das condições de deslocamento e das formas de permanência de cada pessoa que utiliza o espaço público, com foco na compreensão das relações mais banais e cotidianas que ali acontecem, tomando como protagonista de cada situação, o indivíduo, suas particularidades, e sua rede de relações.

Essa forma de projetar os espaços públicos prevê ferramentas de soluções espaciais e de comunicação para ampliar a inclusão, buscando soluções criativas e adaptáveis aos diferentes corpos que ocupam o espaço. Compreende-se que eliminar barreiras físicas não é suficiente, sendo necessário também promover ações que visem mudanças comportamentais. Portanto, é preciso que as soluções não se prendam apenas em desenhos de projeto arquitetônico, mas também que compreendam ferramentas diversas, desde análises do entorno, levantamentos de dados, leitura dos atores do território, ações de envolvimento e escuta, divulgação e comunicação do projeto.

A Microacessibilidade é uma ferramenta de projeto urbano que propõe melhorias urbanas reconhecendo os cenários urbanos informais e irregulares e as condições dos indivíduos e grupos que os utilizam (ou que deveriam poder utilizar), trazendo à tona suas necessidades e reivindicações e permitindo a sua apropriação por todas as pessoas, principalmente as que se encontram em situação de vulnerabilidade, com menor representatividade na ocupação e decisão sobre os espaços públicos.

Conclusão: Princípios para Intervenções de Microacessibilidade para Além da Norma

Para garantir a inclusão efetiva e a autonomia de todos os cidadãos, é essencial estimular a inovação no campo da acessibilidade e, ao projetar, adotar uma abordagem que vá além das normas estabelecidas, considerando os cenários de informalidade das cidades, a diversidade funcional dos indivíduos e as necessidades específicas de cada grupo. 

Projetos de microacessibilidade devem ser desenvolvidos com base na inovação, criatividade e adaptabilidade, visando a criação de espaços urbanos verdadeiramente inclusivos.

Produzido pelo Estúdio +1, escritório de urbanismo e arquitetura que busca inovação para as demandas da cidade e de seus habitantes. https://estudiomaisum.com/

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