Mistura de linguagens como composição estética

Entrevista Moira Braga por Vanessa Augusta / Ilustação Paloma Santos

Vanessa Cortez, jornalista da 7.1, entrevista Moira Braga, atriz, mestre em dança pela UFBA, preparadora de elenco de novelas e peças de teatro para falar sobre sua trajetória artística e contar um pouco sobre o que podemos encontrar da sua história no seu novo espetáculo, Hereditária.

– Moira, conta para a gente como foi a sua trajetória artística até chegar aos palcos e as novelas?!

Sou uma pessoa que desde pequena demonstrava muito interesse nas expressões artísticas. Sempre gostei de ouvir, contar histórias, sempre fui aquela criança que montava o teatrinho, sabe, para os adultos assistirem, que convocava as amigas para fazer alguma apresentação de dança ou de música. Eu tinha isso dentro de mim desde pequena, mas eu fui criada numa cidade do interior. Nasci no Rio, sou carioca, mas com seis para sete anos os meus pais se mudaram para Leopoldina, em Minas Gerais, que é a cidade da minha mãe. Então lá eu não tinha muito recurso, além da gente não ter muito recurso financeiro mesmo, que a minha família era uma família de classe remediada, sabe, assim, que lutava muito só para pagar as contas e a grana nunca sobrava para pagar uma aula de alguma coisa, uma aula de dança, uma aula de teatro, eu estava também num lugar onde não tinha essas ofertas, né, de coisas desse tipo. Então eu voltei para o Rio e fiz faculdade de jornalismo, porque eu achei que também era uma coisa que eu podia me desenvolver bem, porque tem relações humanas, é comunicação e eu sempre gostei de histórias e no fundo um jornalista é um contador de histórias, né, de histórias verdadeiras, mas é. E aí nessa minha volta para o Rio, eu estava com, acho que 19 anos por aí, aí eu comecei a procurar cursos livres de teatro para fazer, isso sempre teve no meu radar e no meu desejo. Eu falo que as pessoas nascem artistas. Quem é artista é. Se descobre artista porque a arte grita muito dentro da gente, num jeito de se expressar, num jeito de perceber a vida, num jeito de se relacionar com outras artes.

Mas, enfim, eu no Rio, depois que eu terminei a faculdade comecei a fazer estágio no SERPRO,  Serviço Federal de Processamento de Dados, como assessora de imprensa. E lá eu conheci o Chico, que é cego, e ele me apresentou a Ana Lu Palma, que tinha um projeto de gravar livros para pessoas com deficiência visual, chamava Livro Falado, ela ensinava pessoas a gravar livros, e, enfim, eu estava precisando de uma pessoa para gravar uns livros para mim de inglês. A Ana Lu tinha esse projeto de gravar livros para pessoas com deficiência visual, o Livro Falado, e ela entrou para o mestrado na Unirio, porque ela era atriz também, e como ela estavajá há algum tempo se relacionando com pessoas com deficiência visual por causa desse projeto dela, ela foi para o mestrado com a ideia de uma pesquisa de como fazer o corpo de um ator cego ter a expressividade que as artes cênicas precisam para você estar em cena. Como ela já sabia do meu envolvimento, de alguma forma, assim, com teatro, ela me convidou para ser uma das colaboradoras da pesquisa dela, então comecei a frequentar a escola de teatro da Unirio como aluna ouvinte dentro desse projeto de pesquisa da Ana Lu, do mestrado dela. E aí, numa aula de corpo lá na Unirio, eu conheci a Angel Viana, que ela foi convidada para dar uma aula de encerramento de semestre. Eu terminei essa aula da Angel muito emocionada, muito tocada, e aí eu fui querer saber quem era essa senhora que deu aquela aula tão marcante para mim e aí eu descobri que a Angel Viana era uma grande bailarina, coreógrafa e que ela tinha uma escola ali em Botafogo, e eu fui conhecer a escola, fiquei namorando, assim, que curso que eu queria fazer lá, entrei para um curso técnico que chamava Recuperação Motora e Terapia Através da Dança, e aí esse meu encontro com a Angel, com a escola dela, foi um grande divisor de águas na minha vida. Eu entrei para a escola, fiz esse curso técnico, depois eu fiz uma pós-graduação em Corpo, Diferenças e Educação, e aí com isso eu comecei a me instrumentalizar a partir do corpo e da dança para ir para as artes cênicas.

Logo depois que eu terminei esse meu primeiro curso na Angel, eu entrei para o grupo Os Inclusos e Os Cisos, que é um grupo de teatro de mobilização pela diversidade, um grupo que foi criado lá dentro da Unirio, com a Tata Werneck e a turma dela,  e eu entrei para esse grupo como, e fiquei acho que uns quatro anos nos Inclusos, onde eu atuei como preparadora de elenco, assistente de direção, assistente de dramaturgia, e comecei muito timidamente a atuar como atriz estandim, que é atriz substituta, porque eu não me considerava, né, atriz, enfim, mas eu já me considerava, né, essa parte da escrita, né, sempre me atraiu muito, então fiz assistência de dramaturgia para o grupo, né, essa parte de corpo, eu já estava vindo de uma pós-graduação, né, de uma, numa faculdade de dança, então já estava também me sentindo bem preparada nesse sentido, é, mas, né, eu não me sentia preparada como atriz para estar em cena. Paralelo a isso, eu entrei para a companhia Pulsar, que é uma companhia de dança daqui do Rio de Janeiro, onde tem bailarinos com e sem deficiência, a Tereza Taquichel, que é a diretora da Pulsar, ela era minha professora lá na ANGEL, então, é, né, houve um, um, um acesso, né, assim, um convite, um acesso muito, que foi muito importante para mim, ter entrado para a Pulsar, também, enquanto lugar de pesquisa e de aprendizado.         

E aí, em 2015, quando eu estava estreando o meu primeiro trabalho como bailarina da Pulsar, porque eu fiquei um tempo meio que como estagiária, observando, aprendendo, aprendendo outras coreografias de outros bailarinos já da companhia. E aí, em 2015, eu estreei na Pulsar como bailarina, no espetáculo Por Trás da Cor dos Olhos. E, nesse mesmo ano, um amigo meu, Mati Lima, me chamou para fazer assistência de direção num espetáculo infantil que ele ia montar. Esse espetáculo chamava-se Nhac! Uma Lição de Queijo. E aí, nesse trabalho de assistência de direção eu estava dando preparação corporal, assistência. Nesse movimento de trabalhar com os atores, de trabalhar com o elenco, eu acabei ganhando um papel.  Ganhando alguns personagens para fazer.  Tinha um triozinho, assim, de traças meio vilãzinhas, comedoras de livros, sabe?  Aí, eu entrei para fazer uma das traças.  Tinha um personagem que era uma preguiça professora de educação física… Aí, eu entrei para fazer esse papel da preguiça. E acabei virando uma das atrizes. Além dessas personagens que eu ganhei, que ficaram como minhas, eu acabei virando também assistente de direção e uma atriz coringa, assim.  Quando alguma atriz precisava faltar, eu entrava para substituir.  E aí, foi então a primeira vez que eu me assumi como atriz, sabe?  Em 2015, nesse espetáculo infantil. E fui para a cena mesmo com coragem e com segurança. A gente atuava, cantava. Tinha umas canções também nessa música. Uma trilha bem bonitinha. E aí, a partir daí, eu não parei mais. Logo depois, surgiu um convite para fazer um espetáculo adulto.  Chamado Volúpia da Cegueira. Eu fiz como atriz com a direção do Alexandre Lino. Depois, eu entrei numa editora. Ganhei um edital para montar um espetáculo com um texto meu que chama-se Ventaneira, Cidade das Flautas.  Ventaneira foi um espetáculo que também virou livro e também é um curta. Está disponível no YouTube.  Se você quiser conferir, chama Ventaneira, Cidade das Flautas. Está no meu canal no YouTube. Continuei dançando com a Pulsar, fiz mestrado em dança na Universidade Federal da Bahia. A dança ainda é, para mim, uma base muito forte, sabe? De trabalho, de pesquisa, enquanto presença corporal. E daí, por causa disso, desse meu trabalho com a dança veio esse lugar de preparação de elenco, né? Antes de eu ser atriz, eu estava trabalhando como preparadora de elenco. Então, eu acho que isso me deu muita segurança para estar em cena. E foi assim também na TV.  Eu entrei para a novela Todas as Flores como preparadora de elenco. Eu estava trabalhando, não só trabalhando com a Sophie Charlotte, que era a personagem principal, que fazia o papel da Mayra, que era cega. Mas eu trabalhei com todo o elenco da novela na preparação.  E aí veio o convite para fazer a Fafá em Todas as Flores. Então, a minha entrada na televisão foi bem parecida com a minha entrada no teatro. Comecei pelos bastidores, comecei como preparadora de elenco, tanto no teatro quanto na TV. E depois fui para a cena. Com isso, esse meu trabalho de preparação de elenco na Globo, eu acho que reverberou de uma forma muito positiva para essa novela, que me trouxe outro convite. Logo em seguida, me convidaram para trabalhar na preparação de elenco da novela Renascer, que foi também muito importante para mim. Um trabalho muito, muito rico. Então, foram essas experiências que eu tive de TV. Com Todas as Flores na preparação e atuando, fazendo a Fafá. E na novela Renascer, que eu trabalhei também na preparação de elenco.

– Dentre essas diferentes expressões da arte tem algum lugar, hoje, onde você se realiza mais ou se identifica mais?

Eu acho que todas essas linguagens me contemplam muito enquanto artista, sabe? Para mim, o trabalho do teatro me realiza muito, é um lugar onde eu me sinto plena, que eu me divirto e que é muito artesanal. É aquele construir todo dia, fazer todo dia.  O trabalho da dança, para mim, é um trabalho que eu acho que me prepara para tudo na vida. Preparar o meu corpo para dançar, para formar um pensamento de corpo dançante. Isso, para mim, é a minha preparação para tudo na vida. E essa minha experiência com o audiovisual é uma coisa que eu estou descobrindo ainda e que é igualmente encantadora. Então, eu acho que eu fico mesmo num lugar de… Uau, que bom! Me sinto muito contemplada com a minha profissão e de poder atuar em todas essas áreas.

– Em Hereditária é a primeira vez que você elabora uma obra a partir da sua própria história de vida? A arte não necessariamente tem uma mensagem embutida, uma moral da história. A arte é, ela está para ir além. Quais as sensações que você deseja suscitar com essa peça? Ou mesmo… existe alguma mensagem que você deseja fazer ecoar?

Olha, a hereditária é o primeiro trabalho que eu falo de mim, né, da minha história de vida, de uma maneira muito aberta, assim. Eu me desnudei completamente, eu falo de coisas muito íntimas, sabe, de fatos muito pessoais, muito particulares da minha vida em hereditária.  E, ao mesmo tempo, eu vejo que quanto mais verdadeiro a gente é quando conta uma história, quanto mais sincera e quanto mais próxima de mim essa história é, mais as pessoas se sentem próximas também, mais as pessoas se sentem afetadas também, conectadas também e se sentem também representadas. Eu ouço muito isso.  Depois dos espetáculos, nossa, essa história me atravessou tanto, em vários momentos. E aí, entrelaçada à minha história, eu trago a história das moiras, pelo meu nome. As moiras são as tecelãs do destino, são deusas que teciam o destino dos homens e dos deuses. Daí eu falo da questão genética mesmo, das heranças genéticas, né, porque eu tenho uma doença hereditária que levou à perda da minha visão, então isso também como herança, mas a partir de um lugar de possibilidades e não de limitação ou de determinação de como as coisas têm que ser, mas de como a gente pode fazer as coisas. Então, eu falo de epigenética, que é um campo de estudos que investiga como os genes podem ser modificados a partir de vivências pessoais ou traumáticas ou de escolhas. Então, eu trago um pouco de ciência, trago um pouco dessa mitologia, eu trago um pouco também das questões políticos sociais, que tem a história da deficiência na humanidade e como em tempos atrás as pessoas com deficiência eram, enfim, eu não quero dar spoiler. Mas é isso, assim, eu trago a minha história como se fosse esse fio. A minha história é  esse fio que vai trançando aí por esses caminhos que eu falo de mitologia grega, eu falo de ancestralidade indígena, eu falo de ancestralidade cultural, eu falo de heranças que a gente escolhe ter também e falo também de possibilidades de mudança. O que eu deixo, eu acho, de mensagem, é, talvez, nesse trabalho, é uma história de amor à vida, sabe, e de como você, de o que que você faz com o que você herda, né, e o que que você escolhe a partir das possibilidades que você tem diante da vida, assim. 

– Como é para você fazer uso dos recursos de acessibilidade e diferentes linguagens dentro dos seus trabalhos?

Ah, e sobre a linguagem, eu como artista cega, eu desde sempre, nos meus trabalhos, eu busquei um encontro da linguagem usada, seja no teatro, na dança ou no audiovisual, como trazer dentro da composição, dentro da dramaturgia, a questão da libras, da língua de sinais e da audiodescrição, como componente estético da obra. E desde o Ventaneira, Cidade das Flautas, eu já trouxe essa minha pesquisa como um intérprete de livros, eram personagens da história junto comigo ali em cena, a audiodescrição era uma narrativa que contava junto comigo aquela história.  E agora, no Entrenúvio, no Hereditária, eu acho que eu cheguei num lugar que me deixa muito feliz, nessa linguagem que eu escolhi, e que eu pesquiso, e que eu desenvolvo desde sempre, que é de estar ali tudo junto em cena, tudo conta aquela história. Então, no Hereditária, a gente tem as canções também, que são canções originais de Pedro Sá Moraes, que é o diretor da peça e é o autor das canções. Então, as canções também contam a história, a língua de sinais também conta essa história, a audiodescrição também conta essa história, tudo acontecendo ali ao mesmo tempo  sabe, em cena em cena estou eu né, Luiz Mendes Dias, que é atriz e também é intérprete de Libras e Isadora Medela, que também é atriz e também é musicista então a gente faz tudo em cena, é Libras ela é passada de mão em mão, então não é só a Luiz que interpreta eu também interpreto, a Isadora também interpreta na Língua de Sinais a gente canta a gente toca instrumentos, é como se é isso, tudo tudo acontece junto ao mesmo tempo e tudo faz com que essa história seja narrada de uma maneira sensorial e dê várias possibilidades de percepção dessa história.

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