Com acessibilidade todo mundo sai ganhando

Os Irmãos Karamazov, texto em destaque na parte superior da arte em roxo e vermelho. Abaixo dele, ilustração do elenco da peça que constitui o núcleo principal do enredo da trama. O pai no centro e ao redor dele os três filhos legítimos e o bastardo. Ao redor dos personagens, uma espécie de aura escura que envolve a trama, assim como gotículas de vermelho em suas vestimentas, simulando sangue.

por Raíssa Couto / Ilustração Paloma Santos

Os Irmãos Karamázov é uma peça bilíngue que foi construída a partir de um processo bem longo, com muito estudo e muita resistência.

Ter uma intérprete em cena foi uma ideia trazida pela diretora de produção Maria Duarte, após diversas conversas que mantivemos, desde 2017, sobre acessibilidade e espetáculos acessíveis. Eu sempre levei essa ideia pra ela como única solução para um espetáculo de fato integrado e acessível. Desde o início do nosso contato, esse foi um assunto em pauta que veio a se concretizar agora em Os Irmãos Karamázov. É muito importante ter uma pessoa aliada dentro de um projeto que não seja parte do time de acessibilidade, sem ela nesse processo todo não sei se o projeto iria para a frente.

Eu sempre trabalhei por uma acessibilidade criativa, integrada e parte de todo processo criativo, e acho que é assim que precisa ser. Acessibilidade na cultura muitas vezes é considerada apenas durante a etapa final, sem envolvimento com a direção, elenco e produção, sendo incluída apenas uma linha na rubrica de que “precisa ter”. Mas sem saber direito o porquê, esses projetos acabam colocando as pessoas com deficiência como um item de orçamento que vai precisar ser espremido ao máximo para conseguir aumentar outras rubricas consideradas “mais importantes”. O ideal para um projeto com acessibilidade é que o acompanhamento seja feito desde o primeiro momento, e assim fizemos nesse espetáculo.

Fechei a equipe e começamos os preparativos de leitura de roteiro, pesquisa e ensaios. Convidei a atriz e intérprete Juliete Viana e, em seguida, a Maria Luiza Aquino (Malu). A escolha por ter uma atriz intérprete surda veio porque não pode ser diferente. Os espetáculos precisam trazer representatividade e precisam trabalhar com artistas DEFs, não só considerar as pessoas com deficiência como público. No Brasil, temos artistas DEFs muito talentosos realizando trabalhos incríveis. Como por exemplo a Jéssica Teixeira, uma atriz e diretora incrível, também mulher com deficiência, que ganhou recentemente o prêmio Shell de melhor diretora pelo espetáculo Monga. Está mais do que na hora da sociedade ampliar a cultura existente e criar novas referências e identidades.

O processo de trabalho de Os Irmãos Karamázov foi um desafio, uma vez que praticamente todo o time envolvido no projeto não tinha contato com a temática da acessibilidade e anticapacitismo, nem com a comunidade surda e, consequentemente, não sabia se comunicar em Libras. Eu fiz toda a coordenação da acessibilidade criativa e cuidei desse processo muito atentamente mesmo esbarrando com diversas barreiras no meio do caminho. Simplifiquei o roteiro todo para a Malu, que começou a estudar diariamente os textos e decorar as falas; durante os ensaios, fiz anotações dos movimentos e marcação das atrizes e atores a cada frase, além de gravar algumas cenas para servir como material base de guia para o seu estudo, idealizei também um livro sensorial que conta a história da peça por meio dos tecidos dos figurinos que foram doados pela Oficina MUDA, em parceria com o Grupo SOMA, teve a direção da Maria Duarte, o projeto de acessibilidade e roteiro feito pela gente, sendo o roteiro junto com a Isabela Capeto que foi a responsável pelos figurinos que são um dos pontos de destaque do espetáculo de tão lindos que ficaram e fechando com a artista Clara Zúñiga que concretizou essa ideia com um projeto artesanal e belíssimo.

Durante os meses de ensaio, eu, Malu e Juliete, fomos entendendo a dinâmica das marcações a cada cena, o que funcionava, quais soluções que encontrávamos e como integrar ao máximo as atrizes intérpretes em cena de uma forma que estivesse dentro da estética do espetáculo pensado pela direção, que aos poucos foi entendendo a potência da língua de sinais e incorporando em alguns diálogos e cenas. 

Eu sabia que a presença da Malu ia ser importante para tirar as pessoas da zona de conforto e gerar muita reflexão com toda equipe sobre esse assunto e mudar uma parte da narrativa da peça. A frase mais importante da obra é falada em português e também em Libras pelo personagem Ivan, que é interpretado pelo ator e diretor Caio Blat na cena III – “Tumulto no salão” – e repetida mais algumas vezes durante a peça, sempre em Libras. A cena V – “O encontro com os colegiais” – é praticamente toda em Libras, além disso, durante o desenvolvimento do espetáculo alguns atores e atrizes incorporaram sinais que vão aparecendo entre as suas falas e, assim, as atrizes intérpretes ganharam mais espaço nas cenas. 

O papel de pensar acessibilidade não é só fazer, é cuidar desse fazer. É fazer com qualidade e de forma que converse com toda a narrativa do espetáculo. Para integrar ao máximo  a interação entre os personagens e as cenas é preciso participar de todas as etapas do processo e colher feedbacks. A cada apresentação colhemos muitos feedbacks do público, e fomos ajustando sempre que possível com aprovação da direção.

Eu sei que é possível integrar ainda mais a acessibilidade em um projeto como esse,  integrar ainda mais as intérpretes atrizes em cena, desenvolver uma audiodescrição integrada e explorar outros recursos, mas tudo em seu tempo, pois são muitos desafios envolvidos também na parte criativa. 

Trabalhar com acessibilidade é também respeitar o tempo de entendimento das pessoas, porque dessa forma todo mundo sai ganhando. E é justamente sobre isso, sobre crescer e transformar uma cultura envolvendo a todos. Em Os Irmãos Karamázov todo mundo saiu ganhando: o time envolvido no espetáculo, o público e a adaptação da obra! 

Ficha técnica Os Irmãos Karamazov

Direção: Marina Vianna & Caio Blat
Direção de Produção: Maria Duarte
Produção Artística: Luisa Arraes
Dramaturgia: Caio Blat e Manoel Candeias

Criativos
Direção musical: Arthur Braganti
Direção de arte e figurino: Isabela Capeto
Direção de movimento: Amália Lima
Desenho de Luz: Gustavo Hadba & Sarah Salgado
Acessibilidade criativa: Raíssa Couto
Cenografia: Moa Batsow

Equipe técnica
Produção executiva: Fabiana Comparato
Produtores assistentes: Arlindo Hartz
Assistente de direção: Sofia Badim
Preparadora vocal: Sonia Dumont
Figurinista Assistente: Antonio Rocha
Assistentes de figurino: Eduarda Sales

Produção de Objetos Cênicos: @settemeio
Assistentes de Objetos Cênicos: @fegarciadezuniga
Cenotécnico: Kerrys Adabalde
Supervisão de Montagem: @magdaleno

Iluminadora Assistente e Operadora de Luz: @luana.della.crist
Operadora de Som: Erica Supernova
Contrarregragem: Cabelinho e Elquires Sousa

Raíssa Couto é diretora da 7.1 acessibilidade criativa. Trabalha como consultora, produtora e especialista em acessibilidade criativa desde 2013, junto com empresas, projetos culturais e educativos. É produtora de impacto do filme Assexybilidade e DJ.

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