Tudo que vem depois do Big Bang

Ilustração de uma mulher em sua cadeira de rodas desenhando em um ipad a figura de uma heroína que usa prótese na perna direita. Ao redor da heroína, uma aura brilha em várias cores.

Entrevista Giovanni Venturini por Vanessa Augusta / Ilustação Paloma Santos



Vanessa Cortez, jornalista da 7.1, entrevistou o ator, roteirista e poeta Giovanni Venturini para falar sobre seu processo de atuação no filme Big Bang, do diretor Carlos Segundo. O curta-metragem ganhou diversos prêmios, entre eles o de melhor filme e melhor ator, e mostra a história de um personagem vivendo um drama familiar em meio à uma sociedade que o exclui. O curta está disponível no Canal Brasil.

– Quando você foi convidado para atuar em Big Bang, qual foi a sua primeira reação ao ler o roteiro? E o que te fez aceitar o convite?

Quando eu fui convidado para atuar no Big Bang, quando eu li o roteiro, fiquei em choque. Eu falei: nossa! Finalmente um personagem que não necessariamente fale sobre a questão do nanismo. Fiquei surpreso nesse sentido. E o roteiro era muito bom, muito bem escrito. Tinha umas pequenas coisinhas assim de termos mesmo para serem ajustadas, mas quando conversei com o diretor, com o roteirista e diretor, com o Carlos Segundo, ele foi super de escuta aberta, super atencioso e gentil e falou: “não, estou aqui pra aprender contigo! Vamos lá, vamos mudar o que você achar ofensivo, o que achar que está errado”, “muito obrigado, aliás, por me educar”. Então, esse foi um dos fatores que me fez aceitar o convite também, a generosidade e a abertura do Carlos e, claro, a qualidade do roteiro e da história e o fato do personagem não necessariamente falar sobre a questão do nanismo. E, esteticamente, era um filme que eu nunca tinha feito antes. Então era um desafio também para mim, nesse sentido. E a atuação acho que tem que ser desafio! Tem que tirar a gente da zona de conforto, sair das caixinhas, né? E dos padrões estereotipados.

– O fato de o foco do filme não ser a sua deficiência trouxe quais possibilidades para dentro da criação? E como foi fazer parte dela?

Sobre o filme não ter esse foco na deficiência em si trouxe, sim, muitas possibilidades para dentro da criação e um diálogo muito generoso e muito aberto, né? Então a gente foi construindo muito junto eu e o Carlos. Claro que o roteiro foi pensado por ele, já chegou pronto, foram pequenos ajustes, mas tanto conversa antes da gente começar a filmar quanto no dia a dia da filmagem… Nos dias que a gente estava no set de filmagem ele sempre foi muito aberto e acho que a construção foi muito junta assim… a gente sempre conversou muito… e é isso: não é comum dentro do mercado audiovisual, né? Normalmente os roteiros e os diretores já chegam com algo imposto e é muito difícil de ter essa escuta, esse diálogo. Foi muito gostoso poder criar junto, construir junto esse personagem a partir de uma troca muito generosa, muito gentil, muito carinhosa. A direção do Carlos é muito atenciosa e isso fez total diferença na criação do personagem e da história em si.


– O que representou para você ser protagonista de um filme?

Esse foi meu primeiro protagonista dentro do cinema e foi muito forte, muito gratificante mesmo ter sido dessa forma, ter sido com essa história, com essa equipe, com essas pessoas. Fez total diferença e, principalmente, de ser um protagonista que não fala sobre a deficiência, em que a deficiência não é o tema principal, não é sobre isso o filme, né? O filme passa por muitas camadas: passa por luta de classe, fala, sim, sobre corpos invisibilizados, mas de um modo geral, o nanismo não está como tema central e fazer um protagonista dessa forma acho que foi sempre o que eu almejei dentro da minha carreira! Poder sair desses estereótipos e desses padrões que a indústria cinematográfica coloca o corpo dissidente dentro do cinema, né? Então ter feito esse protagonista, esse filme que rodou tantos festivais, ganhou tantos prêmios, foi um presente imenso e é muita alegria de ter encontrado com essas pessoas para contar essa história.

– Apesar de o foco do filme não ser sobre uma pessoa com nanismo, o filme inteiro é construído na perspectiva do personagem principal.
O que você considera que essa mudança de perspectiva representa para a luta anticapacitista?

Pois é, apesar do filme não ser sobre nanismo, todo plano é, né? Todo o enquadramento do filme é a partir da perspectiva desse cara que tem nanismo. Então é isso que eu acho que falta se entender dentro do cinema. Que não necessariamente a gente precisa levantar uma bandeira tão escancarada ou falar somente sobre esse tema. O fato de ter o meu corpo com nanismo dando vida a esse personagem já faz com que o tema seja levantado de outras formas. E uma das escolhas estéticas para o filme foi essa de colocar o enquadramento do filme na perspectiva desse personagem. Então é como se a questão do nanismo tivesse potencializado a história do filme, já que não era esse o tema central, mas o fato de ser um ator com nanismo fez com que a história se enquadrasse nesse plano baixo e potencializasse ainda mais os temas centrais da trama, né? Então acho que é muito rico de entender a potência do corpo com deficiência para contar as histórias e que essas histórias não sejam sobre as deficiências! Que esses corpos consigam criar linguagem mesmo e trazer as discussões para uma camada mais subjetiva e mais profunda e não tão escancarada, não tanto levantando  a bandeira de uma forma muito clássica e clichê, né? “Ah, então atores com nanismo só podem falar e interpretar personagens que falem sobre a questão da inclusão e da acessibilidade?” Não acho que é isso, né? O corpo com nanismo está na sociedade vivendo outras tantas histórias, outras tantas lutas. E poder retratar isso no cinema faz com que o público comece a enxergar o corpo com deficiência de um modo geral dentro da sociedade, vivendo essas outras histórias. E a gente não vive cem por cento do nosso tempo em prol da nossa deficiência. Nós temos muitas outras questões, né? Então quando um filme retrata esse corpo em outras lutas, em outras camadas, em outras discussões, em outras histórias, ele agrega muito para luta anticapacitista, para o corpo com deficiência ser visto como o corpo de um cidadão, né?

– Como você considera que a indústria do audiovisual poderia naturalizar as vivências de pessoas com deficiência nas narrativas sem levar a discussão para o “lugar comum” da incapacidade ou vitimização?

Acho que acabei respondendo um pouco dessa na anterior, mas vou reforçar aqui. Acho que a indústria do audiovisual pode naturalizar a vivência das pessoas com deficiência dando personagens dignos e personagens que não necessariamente girem em torno da deficiência, né? Como eu disse, as pessoas com deficiência não vivem somente sua deficiência, cem por cento do tempo. Isso é mais uma característica da nossa pessoa, do nosso corpo e a gente vive outras tantas discussões e outras tantas camadas dentro de uma sociedade e dentro das relações interpessoais. Então acho que é sair desse clichê de convidar atores e atrizes com deficiência para interpretar apenas personagens que vão falar sobre isso, que tem esse tema, que tem esse pano de fundo, né? Eu acho que é dar oportunidade para atrizes e atores com deficiência interpretar qualquer personagem que seja. E aí a presença desse corpo dando vida a esses personagens só vai enriquecer ainda mais a história e trazer outras camadas. Acho que o que falta é essa conscientização da classe, dos diretores, dos produtores de elenco, da produção em geral e enxergar a possibilidade de outros atores interpretarem os mesmos personagens, né? E essa coisa de só colocar os mesmos galãs, o mesmo biotipo de corpo, as mesmas mulheres, os mesmos corpos femininos sendo os desejados dentro das tramas… Eu acho que é sair desses clichês e desses estereótipos. Possibilitando a gente enxergar o corpo com deficiência em vários níveis, em várias camadas, em várias possibilidades, em vários personagens. Sendo bons, ruins, sendo vilões, sendo heróis, sendo mocinhos, sendo tudo, né? Porque é isso, é um ser humano e como outro qualquer tem muitas camadas e nuances dentro da vida. Não só a questão da deficiência, não gira em torno apenas disso a vida de uma pessoa com deficiência.

– Como esse projeto impactou a sua vida enquanto artista? E se deixarmos um pouco de lado o ator, como isso impactou a sua vida?

Esse projeto é muito importante pra mim e impactou minha vida em vários aspectos. Principalmente pelo reconhecimento enquanto um ator capaz de interpretar personagens que fogem do lugar lúdico ou do humor, desses clichês e desse estereótipo que colocam a pessoa com nanismo nas artes. Então, trazer uma história tão forte, densa, com camadas, uma atuação diferente da que tô acostumado a viver me projetou ainda mais dentro da indústria do cinema e, a partir daí, recebi muitos outros tantos convites. O filme, apesar de ser um curta-metragem, e apesar de ser um filme que rodou muitos festivais e não entrou, necessariamente, no circuito comercial de acesso ao grande público, mas o fato de percorrer muitos festivais e ganhar muitos festivais, ganhou uma visibilidade e uma abertura muito grande pra mim, pra eu ser convidado para outros trabalhos no audiovisual. Outros diretores passaram a me conhecer, passaram a me convidar, e muitos dos convites que chegaram para mim depois do Big Bang, os personagens não falam sobre o nanismo. Teve uma viradinha de chave! Quando me viram atuando em Big Bang pensaram: podemos chamar esse ator para interpretar outros personagens, não necessariamente personagens com nanismo. Isso mudou bastante na minha visibilidade e na minha projeção como ator, principalmente dentro do audiovisual. Sobre o impacto na minha vida, eu tava num momento muito desanimado com a carreira pelos convites que vinha recebendo, e esses clichês e estereótipos que eu já falei tanto, eram só os convites que me chegavam. Então a partir do Big Bang, que chegou e me reacendeu a chama de atuar, o filme fala sobre consertar fornos e acender a chama, então o filme realmente reacendeu essa chama em mim, sobre atuar. Que realmente existem pessoas que estão me enxergando enquanto artista, enquanto pessoa antes da minha deficiência, então isso mudou muito o meu entusiasmo, empolgação, e a partir dos prêmios que ganhei: o filme ganhou muitos prêmios como melhor filme, eu ganhei muitos prêmios como melhor ator. É claro que a gente não trabalha para ganhar prêmio, não é sobre isso, mas poder ser reconhecido pelo seu trabalho e ser valorizado pelo seu trabalho motiva você a seguir e acreditar que está no caminho certo.
Então impactou muito a minha vida nesse sentido, o reconhecimento e essa chama que reacendeu fez com que alimentasse essa paixão, esse amor pela atuação que eu tenho, e de querer seguir e de acreditar em um cinema melhor, um cinema anticapacitista, e de acreditar que eu posso, sim, interpretar outros personagens e não só aqueles que recebi em toda a minha vida. Então é um filme que realmente mudou a minha vida, tanto no âmbito pessoal, quanto no âmbito profissional.

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