Mapeamento Acessa Mais e a mudança de paradigma

Produção audiovisual dirigida por pessoas surdas? Temos!! Texto escrito em letras brancas, centralizado, sobre fundo roxo. Abaixo dele, a ilustração de uma câmera cinematográfica com uma mulher branca atrás dela fazendo a filmagem. Ela é loira, usa óculos e está com um aparelho auditivo na orelha esquerda. À sua frente, uma menina negra de cabelos longos e cacheados é filmada.

Entrevista Edu O. por Vanessa Augusta / Ilustração Paloma Santos

Vanessa Cortez, jornalista da 7.1, entrevistou o professor de dança, coreógrafo, dançarino, escritor e ator, Edu O., sobre o surgimento do Mapeamento Acessa Mais e sua importância para o contexto das artes produzidas por pessoas com e sem deficiência, e também promovidas por agentes culturais. Confira abaixo:

Como foi que nasceu a ideia do Mapeamento Acessa Mais? A partir de quais necessidades enfrentadas no campo cultural no âmbito dos artistas com e sem deficiência ou produtores culturais com e sem deficiência?

Bem, o mapeamento surge, mais especificamente, logo depois da performance da queda. Quando, na ocasião do lançamento da Lei Paulo Gustavo, que foi feita aqui em Salvador, eu fui convidado pela UFBA para participar de uma mesa sobre acessibilidade na Lei Paulo Gustavo e no evento anterior de lançamento na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, a acessibilidade não foi pensada e nem a presença de artistas com deficiência na apresentação.

Enfim, a coisa do protagonismo, de a gente estar também inserido não só em termos de acessibilidade para público, mas entendendo que nós produzimos arte e cultura no país.

Isso foi numa quinta-feira, na sexta eu fui para a reitoria da UFBA para participar da mesa e já tinha elaborado uma performance para reivindicar esse lugar que, na verdade, é uma reivindicação não minha, exclusivamente, mas já de muito tempo, de muitos artistas, de muitas pessoas com deficiência que trabalham na arte e na cultura, reivindicando o reconhecimento e a valorização do nosso trabalho e que a gente não esteja só vinculado ao discurso da acessibilidade, porque na Lei Paulo Gustavo tratava-se da acessibilidade de forma preferencial, então não era nenhuma obrigatoriedade e em um artigo da lei que discriminava todos os agentes culturais, todas as pessoas que fazem, todos os grupos sociais que produzem cultura e arte no país, a gente não estava.

Então, a partir daí, chamei Elinilson Soares, que é um artista surdo daqui, para a gente fazer uma performance, porque entendi que naquele momento apenas falar, denunciando isso, não bastava. Era necessário fazer uma ação performática, uma ação artística, para dizer que a gente já produz e já promove cultura no país já há muito tempo. E aí houve uma performance de queda, onde eu me feri, e isso teve uma proporção muito grande, mudança inclusive dentro da própria programação do seminário que estava acontecendo para participar da mesa.

Logo depois, a Secretaria de Formação Livro e Leitura do Ministério da Cultura começou a me procurar, na pessoa de Naine Terena, que trabalhava na Secretaria na época, para saber o que a gente poderia fazer juntos.

O secretário Fabiano Piúba estava interessado em fazer alguma ação, algo concreto, que correspondesse àquele anseio daquilo que a gente fez na reitoria. E aí é que surge, então, depois de muitas conversas, a proposta do Mapeamento Acessa Mais que é um termo de execução descentralizado, ou seja, o Ministério da Cultura investe em um projeto em parceria com uma instituição, no caso a UFBA, e  por eu ser professor da escola de dança da UFBA fui convidado pra coordenar esse projeto que visa mapear artistas e agentes culturais com deficiência e profissionais da área de acessibilidade cultural, profissionais com e sem deficiência que atuam em todo o território brasileiro.

De que modo o projeto contribui para a visibilidade e reconhecimento de artistas e agentes culturais?

Esse é um ponto fundamental que eu considero uma mudança de paradigma que o Mapeamento Acessa Mais aponta, porque durante muito tempo nós ficamos vinculados ao discurso da inclusão, ao paradigma da inclusão e o tempo inteiro associado à acessibilidade, que é algo importantíssimo tanto para quem é público das artes quanto para quem produz arte e cultura no país, porque sem acessibilidade a gente não tem acesso nem à formação profissional, artística, muito menos acesso ao próprio repertório também cultural do país, e isso para quem trabalha com arte e cultura é muito importante: a gente ser alimentado por todas as manifestações, enfim, tudo que uma sociedade, um povo produz de cultura.

Então, sem a gente ter acesso, a gente também não consegue se identificar nesse meio. Então, a gente também não consegue nem saber que a gente pode produzir arte e cultura, mas nós não somos sinônimos, né? Nós, pessoas com deficiência, não somos sinônimos de acessibilidade e muito menos queremos inclusão nesse sentido, porque a gente entende que na cultura e na arte nós já produzimos há muitos anos, vide expoentes da arte e da cultura brasileira de muitos séculos.

Então, como Aleijadinho, por exemplo, no Barroco, que é o maior número. Sempre dou esse exemplo porque eu acho que é isso. Quando a gente estuda o Barroco no Brasil, é impossível não falar de Aleijadinho, de uma pessoa com deficiência. E aí se fala, obviamente, que ele tem deficiência, mas esse marcador não tem um destaque, não tem uma importância. Assim como em outras áreas também, de pessoas com deficiência na literatura, na música, na dança, Maria Duschenes mesmo, teve pólio já adulta e se tornou uma pessoa com deficiência, é um grande nome na dança do Brasil.

Então, se a gente pensa em Roberto Carlos na música, Marcelo Rubens Paiva e Glauco Matoso na literatura, enfim, muitas outras pessoas em diversas áreas. E aí eu acho que o que o mapeamento traz é exatamente isso, é o reconhecimento que a gente já produz. Hoje, no dia 6 de novembro, nós estamos com mais de 1.900 cadastros, estamos chegando quase a 2.000 em menos de dois meses do formulário disponível.

Então, a gente tem alcançado e percebido que é um projeto que tem mobilizado muitas pessoas justamente por essa importância. A gente durante muito tempo não teve esse reconhecimento, não tinha visibilidade, né? É um projeto inédito, é um mapeamento a nível federal e inédito. Nunca nenhum Governo Federal fez um mapeamento para identificar essas pessoas e esses profissionais, então é um marco realmente que acredito que possa gerar frutos bastante importantes. Para profissionalização, para a implementação e efetivação de leis que nos amparem e garanta nossos direitos também.

Entendemos que este projeto tem um significado imenso para os fazedores culturais, principalmente, as pessoas com deficiência que estão na cultura. Como é para você estar à frente de um projeto tão importante? 

Para mim, é uma alegria, uma satisfação imensa, porque é isso, é uma reivindicação muito antiga. Eu lembro das conversas com a Estela Lapponi, que também faz parte do projeto, com Natália Rocha, que também faz parte do projeto. Então, entre outras pessoas, outras artistas com deficiência que é isso, a gente nunca se entendeu muito dentro desses discursos que nos colocaram na arte da dança inclusiva, da arte inclusiva, de como coisa das instituições, das associações.

E aí chegar a um projeto como esse, onde eu pude colaborar na própria feitura do projeto, na elaboração, para a gente apresentar os conceitos mais atualizados sobre deficiência, sobre acessibilidade cultural, a Teoria Crip que permeia tudo, no sentido do aleijar a dança, no sentido de que reconhece a cultura DEF, o que a gente tem falado da cultura DEF, que é essa produção de pessoas com deficiência, onde a própria deficiência determina modos de pensar, modos de fazer, então, metodologias de comunicação, enfim, de pensar a arte a partir das nossas experiências corporais, que são infinitas e são inúmeras, e reivindicar esse lugar mesmo de produção de conhecimento.

Então, para mim, que sou um artista, pesquisador, que sou um militante, estar à frente disso junto com uma equipe gigantesca, como eu falei: Estela Lapponi, Natália Rocha, Ananda Guimarães, de Manaus, Amanda Lyra, que é do Sul, Renata Rezende do Centro-Oeste, Fábio Passos no Nordeste também, junto com Marilza Oliveira na vice-coordenação, 10 bolsistas de graduação da UFBA, equipe imensa de acessibilidade da Dê Um Sinal e uma equipe de tecnologia que fez nosso site acessível. No Brasil, dos 21 milhões de sites, apenas 1% é acessível e o nosso, a gente conseguiu, e isso graças a equipe liderada por Amanda Lyra, então, assim, a gente conseguiu algumas coisas muito importantes já. É uma equipe gigante e que fico muito feliz de estar à frente.

Como você considera que teria sido para você encontrar apoio em uma iniciativa parecida no início da carreira?

Faria toda a diferença. Evitaria muitas violências, muitas opressões, muitas exclusões. Percebo que o mapeamento tem de fato construído uma rede onde a gente tem se identificado, se reconhecido. “Ah, existem pessoas com deficiência no circo. Ah, existem profissionais com deficiência atuando em toda a rede do audiovisual. Que massa! Quero me inscrever. Como é que faz?”

E tem mobilizado também pessoas produzindo eventos em cidades e de maneira bastante independentes da gente e que nos procuram: “ah, Edu, eu gostaria de fazer, a gente tem um evento”, como aconteceu com a Primeira Mostra Literária de pessoas com deficiência em Campo Grande, lá no Mato Grosso do Sul, que a produção me procurou e a gente botou um stand para cadastro das pessoas que o frequentaram.

Então, assim, tem mobilizado pela importância, pela força do que é mesmo. E se eu tivesse isso no início, logo quando eu comecei a dançar, ou fazendo artes plásticas, e antes disso mesmo. Sempre desejei ser artista, muito pela influência da televisão, em Santo Amaro, no interior da Bahia, e fui fazer belas artes, artes plásticas, a faculdade de artes plásticas, porque não me identificava e não me reconhecia nem no teatro, nem na dança, no cinema, porque então eu não tinha pares.

E aí eu fui para as artes visuais, porque era uma maneira de me expressar artisticamente e de uma maneira meio escondida, já que não era o meu corpo com deficiência que estaria exposto. E eu acreditava que era isso que fazia com que a gente não estivesse na dança, no teatro, no cinema, enfim, na mídia.

E ter um projeto desse onde a gente tem 1.900 pessoas inscritas! Se pensarmos no Brasil, na quantidade da população, no número da população brasileira, ainda é muito pouco, sem dúvida, mas já é demais. Inclusive isso indica para festivais, para espaços, para curadores, programadores, que nós estamos aqui. Porque uma das desculpas é a gente acha que não existem pessoas com deficiência, não existem muitos artistas com deficiência. Existimos, sim! Então já temos números, que inclusive ainda é pouco, porque com certeza temos muito mais, mas já temos 1.900 cadastros no mapeamento. E isso faz com que a gente tenha um sentido de comunidade e de fortalecimento.

A gente sabe que a gente não está só! Isso seria muito importante para mim, logo no início da carreira, além de também ter referências mesmo de pessoas com deficiência, no sentido de como produzem, como é que está sendo discutido o assunto, porque nós não falamos só sobre deficiência…mas de que maneira, né, o corpo com deficiência fala sobre questões de gênero, fala sobre questões amorosas, fala sobre questões de encontro, enfim. De que maneira e essa é a maneira que a gente tem chamado, né? Da especificidade da cultura que pra mim seria maravilhoso porque ainda hoje a referência de um corpo normativo como um padrão a ser seguido ou com metodologias específicas não correspondem a nossa corporalidade. Então isso ainda é muito forte e um projeto como esse faria toda a diferença.

Quais foram as suas referências artísticas enquanto você se desenvolvia enquanto artista e hoje?

Pensando mais especificamente para trazer também o recorte da deficiência, porque as referências são muitas, de diversas áreas. Mas quando eu comecei a dançar, que eu tive contato com Condoco Dance Company, um vídeo de dança, um curta muito maravilhoso, então foi assim: “nossa, quero chegar lá” porque eu comecei no Sobre Rodas aqui, numa pesquisa em dança e deficiência de Rita Spinelli, em 1998.

Em 1999 eu entro no Grupo X de improvisação que muda todo o meu modo de pensar a vida, o mundo, a arte. Então o Grupo X é um marco realmente muito forte pra mim e o Sobre Rodas também porque foi a minha porta de entrada. E aí, nesse período, quando eu conheço o trabalho do Condoco, e que conheço, vejo Dave Toole dançando, eu digo assim: nossa! Ele foi um farol que me guiava e estimulava artisticamente a desejar seguir. Então, Dave Toole foi muito importante para mim.

Nas artes visuais, Frida Kahlo, indiscutivelmente. E aí é isso. Quando eu fiz Belas Artes, eu ainda não tinha essa consciência muito grande, nem o ativismo, a militância da coisa da deficiência. Mas Frida, o trabalho dela é impactante, é maravilhoso. E obviamente, mesmo que não fosse conscientemente, ser uma artista com deficiência, sem dúvida, me mobilizava mesmo que eu não tivesse essa consciência à época, que fosse mais pelos trabalhos mesmo, pelas cores, pelas formas, pelos temas que ela abordava geralmente, aquela coisa trágica, aquilo me mobilizava muito. E, sem dúvida, Frida é imensa.

Hoje em dia, tem Estela Lapponi, sempre falo, que é uma grande referência pra mim. E que bom que a gente trabalha junto. Tem Jéssica Teixeira, que é uma artista que eu fico muito atento a forma como produz arte, como constrói, e tudo no teatro. Ah, eu tenho muitas e muitas e muitas referências. Tenho muito mais referências, mas todos esses nomes me surgem agora.
Ah, e eu não posso esquecer de Marcelo Rubens Paiva, porque quando eu li Feliz Ano Velho, na adolescência, aquilo também foi marcante para mim. Ter alguém como eu que escrevia livro, eu que adorava escrever poesia, o sonho de ser autor também, escritor, enfim. Marcelo foi uma outra fonte de impulso pra eu saber que eu podia. É isso, aquela coisa que eu falei anteriormente, né? A gente vai se reconhecendo na comunidade, como uma comunidade. Então a gente vai entendendo também que a gente pode e pode conseguir caso deseje aquilo. Não é tão simples assim, não basta só desejar, mas o desejo e o reconhecimento é um ponto de partida importante!

Para saber mais sobre o projeto acesse:
https://www.mapeamentoacessamais.com.br/

compartilhar post